O homem que nunca parou
Hayao Miyazaki é um animador, cineasta, roteirista, escritor e artista de mangá japonês, cofundador do estúdio Ghibli de animação. Miyazaki sempre criou suas obras à moda antiga, ou seja, sem qualquer ajuda da tecnologia moderna — pense em desenhos feitos a lápis, e coloridos com aquarela.
Dentre os longas de animação que ele criou está “A Viagem de Chihiro” — lançado em julho de 2001 no Japão e exatamente dois anos depois no Brasil —, até hoje aclamado tanto como uma das melhores animações dos anos 2000 como de todos os tempos. Para se ter uma ideia, a animação desbancou, nada mais, nada menos, que o Titanic de James Cameron em termos de maior bilheteria de todos os tempos no Japão.
“Never-Ending Man”, que encontrei ao acaso disponibilizado no YouTube, é um interessante documentário da NHK, lançado em 2016, que conta um pouco da vida de Hayao após ele anunciar que iria se aposentar, em meados de 2013. Tendo buscado preparar diversos sucessores para seu lugar ao longo dos anos, o fato de nunca tendo sido capaz de efetivamente largar o osso fez Miyazaki admitir ter drenado todo o potencial de quem treinou, acabando por afugentar cada potencial sucessor, devido a sempre buscar em cada candidato a perfeição que sempre buscou em seus próprios trabalhos.
A aposentadoria logo se mostra parcial — sendo apenas quanto a produção de longas-metragens. Miyazaki demonstra ainda ter uma mente prolífica, cheia de ideias e projetos, que só não consegue levar a cabo sozinho por acreditar não ser mais capaz de se concentrar como fazia quando era mais jovem.
Miyazaki, que conforme o documentário avança mostra ser um verdadeiro workaholic, acaba se envolvendo com um time de jovens artistas especialistas em CGI para executar sua mais nova ideia, o curta-metragem de animação “Kemushi no Boro” (“Boro, a Lagarta”).
Boro, a lagarta gerada por CGI.
O mangaká se energiza na presença dos mais novos, e tenta ver o CGI com bons olhos, embora não esconda que tem o pé atrás com a tecnologia em geral: quando aprende sobre a existência do deep learning, e como, entre 5 a 10 anos, os computadores podem vir a colorir os desenhos exatamente como fazem os seres humanos, ele reage dizendo que “se chegarmos a tal ponto, não precisaremos mais de seres humanos”. E quando conversa com o líder de animação por computador, que lhe mostra uso de IA para animação, se mostra desgostoso tanto sobre seu uso quanto sobre o desenvolvimento de uma futura máquina, capaz de desenhar como os humanos — já que a inteligência artificial não possui emoções, ou compaixão verdadeiras, capazes de produzir obras como as de seu estúdio, que, em suas próprias palavras, “mostram a beleza do mundo que, de outra forma, não se pode perceber”.
A certa altura, Hayao decide que desenhar à mão é a única solução, e que ele não pode mais fugir disso, mesmo que seja preciso tremenda paciência, dê muito trabalho e seja cansativo. O curta, segundo consta da Wikipédia, no entanto, acabou se tornando, ao ser lançado em 2018, o primeiro trabalho do estúdio Ghibli a ter um protagonista totalmente gerado por CGI.
Miyazaki então decide que fará mais um longa-metragem, mesmo sabendo que será um trabalho difícil como todo outro projeto desse tipo. Ele termina o documentário dizendo estar preparado para morrer antes de ver a nova obra concluída, e que prefere morrer desta forma — com algo pelo que valeu a pena viver —, ao invés de morrer enquanto não está fazendo nada. Atualmente, “O Menino e a Garça”, de 2023, é o último longa que ele produziu.
Uma pessoa como Hayao Miyazaki, que afirma que ao concluir um filme é crucial que ele não se envergonhe dele, e que deseja nunca se lamentar por não ter tentado alguma coisa, pois tentar e falhar é melhor do que não tentar, certamente não é alguém que vá parar de trabalhar. Seu perfeccionismo, me parece, fará com que ele trabalhe até o dia em que vier a falecer, como afinal acontece com tantos artistas de gênio incomparável.
Mas o que mais me chama a atenção são os comentários e reações do artista ao uso de IA, feitos em 2016. Ele demonstrou sua aversão, chamando o uso da tecnologia, hoje tão em voga e no auge do hype, de um “insulto à própria vida” (embora por motivos pessoais revelados no vídeo) e como teme que o fim do mundo possa estar chegando.
Achei a fala dele um tanto quanto profética *para tantos anos atrás, já que atualmente tanto se discute, não o fim do mundo, mas sim o fim do *valor do trabalho associado à criatividade, com modelos de IA sendo capazes de reproduzir, com graus variáveis de qualidade, o trabalho de artistas em questão de segundos, inclusive imitando diversos estilos famosos.
Ainda assim, acho que obras inspiradas como as de Miyazaki, nunca serão passíveis de cópia total, ou criação por IA, pois às máquinas, de fato, falta emoção e tato.