Daniel Santos

A prostituição do CPF

Não consigo pensar em experiência mais chata do que ir à farmácia comprar um remédio e o balconista me pedir o número do CPF. Considero uma enorme invasão de privacidade.

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Conforme minha formação em TI e a minha experiência com processos me levaram a integrar discussões de adequação à LGPD, minha restrição quanto a informar meu CPF na farmácia e ter minha privacidade violada só aumentou.

Amigos, colegas e família acham graça na minha relutância. Eu respondo que não existe no Brasil documento mais prostituído que o CPF, e isso é culpa das farmácias: com suas promessas de trocar o número desse documento por descontos enormes em medicamentos, entoam um canto da sereia que levou meu cachorro e toda a torcida do Flamengo a acreditarem que informar o CPF em troca descontos não tem nada demais.

Eis que ontem me deparo, no YouTube, com o vídeo “O novo esquema das farmácias”, publicado em 07 de junho de 2024 pelo canal Elementar, falando exatamente sobre o que as farmácias de fato fazem com o nosso CPF. O vídeo foi baseado na reportagem “O que a farmácia sabe sobre mim?”, da jornalista Amanda Rossi, publicada em outubro de 2023.

Através do seu CPF, as farmácias sabem de tudo sobre você **, incluindo se você tem depressão, quais são seus hábitos sexuais, se engravidou, se teve filhos e muito mais. Armazenam tudo e por períodos tão longos quanto **pelo menos 15 anos, o que quer dizer que a farmácia sabe mais sobre você do que sua família, seus amigos e seu médico.

Vídeo assistido e reportagem lida, consigo afirmar que, por detrás da inocente solicitação de CPF, seus dados de consumo são vendidos a empresas interessadas em te exibir anúncios. Se você tem filhos pequenos, assiste a propagandas tentando te vender um carro maior; se tem dores nas costas, vê anúncios de massageadores portáteis, por exemplo.

E quem vende os seus dados? A própria farmácia. A RaiaDrogasil, maior rede de farmácias do Brasil, tem um banco de dados com informações de pelo menos 48 milhões de pessoas, disponibilizado à RD Ads, startup da rede que diz ser responsável pelo marketing da rede, mas que atua explorando esses dados e repassando-os a quem tiver interesse. No fim, é como a máxima das redes sociais, em que nós acabamos sendo o produto.

“Ah, mas o CPF que eu informo é pra me darem desconto, Daniel”. Mentira. Detalhes explicados tanto no vídeo quanto na reportagem do UOL mostram que os “descontos” são fictícios, e na verdade se baseiam na tabela do CMED, criada pelo governo e gerenciada pela Anvisa, para mostrar o “valor máximo” pelo qual um remédio seria teoricamente vendido, valor esse que cai conforme o remédio está há mais tempo no mercado, e suas patentes são quebradas, se tornando sempre mais baixo. O governo não revisa essa tabela, e a farmácia se aproveita pra anunciar o remédio pelo “preço mais alto”. Se você não informa o CPF, acaba pagando esse preço. É uma armadilha.

O problema é o que dá pra ser feito pra não cair na armadilha. Existem leis no estado de São Paulo, por exemplo, que é onde eu moro, que dizem que é ilegal vincular o desconto do remédio a informar o CPF; na prática, no entanto, é virtualmente impossível conseguir fazer a farmácia cumprir o estipulado. Muita gente também não quer se expor, nem se indispor com o atendente ou o gerente da farmácia, e acaba informando o CPF de qualquer maneira — eu mesmo, muitas vezes, passo o CPF só pra não ter que pagar o valor da tabela CMED, muito mais alto.

O mais efetivo é usar os direitos adquiridos pela LGPD. A lei de proteção de dados permite que eu entre em contato com a farmácia e exija a exclusão de todo e qualquer histórico de dados que eles possuam associado ao meu CPF. Se isso for feito regularmente, ao menos garante-se que a farmácia não nos explore e transforme em produto.

#português #privacidade